Guia prático para fazer um doutoramento fora - Parte II
A instalação
Isto de ir viver para o estrangeiro tem muito que se lhe diga... começar a tratar das burocracias não é trivial e requer, a maior parte das vezes, algum engenho e jeito para mentir!
Senão, vejam só as aventuras porque passei.
Primeira viagem a Strasbourg - Junho
Resolvi vir com antecedência para poder entregar os vários papéis pessoalmente e começar logo à procura de casa. Parece uma boa ideia, tratar de tudo com 3 meses de antecedência. Só que nem tudo correu bem.
Para começar, fiquei com as mesmas dúvidas que tinha, porque a pessoa que estava encarregada de tratar das candidaturas estava fora. E ao contrário do que acontece em Portugal, em que ninguém sabe nada e por isso dá-nos informações erradas, aqui não! Como mais ninguém sabe, ninguém pode ajudar. Simplesmente fica-se à espera... que a pessoa volte. Uma pergunta assalta logo o espírito de qualquer um: imaginemos que a pessoa se demite, ou vai de férias, ou adoece. O que acontece então? E a resposta é simples: como a pessoa que faz aquele trabalho já não está lá, ninguém o pode fazer! Pelo menos, foi a impressão com que fiquei.
Mas lá consegui entregar os documentos e comecei à procura de casa.
Fui às residências universitárias públicas e a coisa até prometia. Há muitas residências, e em Junho ainda há muitas vagas. Só que na França até para perguntar as horas é preciso marcar um "rendez-vous". E no "rendez-vous" descobri que não me posso candidatar a uma residência porque ... não tenho cartão de estudante. "Sim", respondi eu, "porque ainda não sou estudante. Fiz a candidatura, a universidade já disse que me aceita, mas só em Setembro é que faço a matrícula". "Ah", respondeu o homem, "então não se pode candidatar a uma residência porque são apenas para estudantes. É preciso ter cartão de estudante ou certificado de inscrição". Pois... então, a malta chega, vai dormir para a estação de comboios nas primeiras semanas, até poder começar a procurar casa. É claro que entretanto já todas as residências estão ocupadas! Então, virei-me para o mercado privado. A conselho do David fui a uma residência, chamada "Les Laureades" (onde estou a morar neste momento), e a burocracia é a mesma. Só que estes são ligeiramente mais liberais: aceitam um documento provisório da univ onde digam que vou ser estudante a partir de setembro. Boa! Então agora só preciso de um fiador (que tem de ser residente em França, e um cheque, francês, claro, de 160 Euro). Pergunta natural: onde raio vou encontrar um fiador? Fui falar com a minha orientadora que disse que n havia problema. Entregava-me os documentos todos no dia seguinte (declaração de impostos, últimos 3 recibos de ordenado, comprovativo de residência, etc). E em relação ao cheque, passei um cheque da CGD. Felizmente, com o Euro, cheques de Portugal podem ser pagos em França (embora não seja simples, só as agências centrais aceitam cheques estrangeiros). Mas quando me perguntaram se aquele cheque podia ser pago sem problemas em França a minha resposta foi logo "Sim, claro! não há problema" (só mais tarde descobri que de facto não haveria problema, na altura menti com quantos dentes tinha!). E a seguir ia necessitar de uma conta no banco, porque preciso de um RIB (Rélève d'Identité Bancaire, o NIB gaulês). Então fui ao Banco. Propuseram-me um rendez-vous para daí a 1 semana (o que me adiantava de muito, uma vez que voltava para pt daí a 2 dias). Lá convenci a mulher a arranjar-me um rendez-vous nesse tarde. Digo que quero abrir uma conta no banco. Então pedem-me um documento de identidade e um comprovativo de residência em França. Ok. Ou seja, preciso de uma conta no banco para ter casa e de uma casa para ter conta no banco. Porreiro! "Mas não posso abrir a conta como estrangeiro?" perguntei eu. "Pode!", respondeu ela. "Então quero fazer isso" disse eu. "Ok, então só precisamos de uma carta de recomendação do banco português que declare que a morada é correcta" disse-me ela. "Então f$%*-se", pensei eu. Mas não disse. Voltei para Portugal sem conta no banco, mas lá consegui, com um NIB português, fazer o pedido de casa na residência.
E o resultado é: Nelson 0, Burocracia francesa 1
2ª viagem a Strasbourg - Agosto
Passado 1 mês recebo os papéis da residência a dizer que sim senhor, vou ter casa, mas falta um RIB e falta assinar os contratos. Volto a Strasbourg em Agosto, desta vez equipado com um contrato de arrendamento para voltar ao banco. E lá consegui abrir a conta! Disseram-me que a morada é muito importante, caso eu queira pedir cheques ou um cartão bancário, porque precisam de ter a garantia que o correio é bem entregue. "Ah, mas eu não quero nada disso! Eu só quero depositar 1200 Euros em dinheiro e fazer uma transferência para a residência". Em outubro então vou querer isso tudo, cheques, cartão de débito, etc. "Ah, então tá bem!".
E nesta altura o resultado está: Nelson 1, Burocracia francesa 1
Chegada definitiva - Setembro
Até que finalmente chego a Strasbourg. Escolhi um mau dia para chegar: cheguei num sábado. Consegui ir ao supermercado fazer o 1º abastecimento considerável, mas não consegui comprar tachos, pratos, talheres, etc. Ou seja, comi kebab ao jantar e kebab ao almoço de domingo. É que aqui as lojas fecham às 19h ao sábado e ao domingo tá tudo fechado! Se eu quiser agora sair para beber um café só no centro é que encontro alguma coisa aberta. Mas para comprar leite só nas bombas de gasolina; livrarias, lojas de música, seja o que for, tá fechado! e amanhã é feriado, ou seja, tudo fechado outra vez! Embora esta questão não seja burocrática, conta como 1 golo para a burocracia francesa.
Nelson 1, Burocracia francesa 2
Segunda feira consegui ir ao IKEA (o David levou-me lá de carro pq aquilo ainda é longe) e comprei as coisas de 1ª necessidade. Voltei lá no fim da semana para o 2º abastecimento. E comecei à procura de: ligação internet, telefone fixo, cartão multibanco, passe de transportes (estávamos a dia 27 e eu queria ter passe no dia 1), inscrição na universidade, etc.
Terça feira comecei as aulas e a coisa prometia: as burocracias não podiam ser assim tão complicadas. Mero engano.
1. Não posso pedir cartão multibanco pq ainda não entreguei o comprovativo de residência
2. Não posso tirar o passe porque custa 32 euro e as máquinas automáticas só aceitam dinheiro até 24 euro ou então cartões de débito/crédito franceses (nada de Visas electrons. Se não é Carte Bleue não serve)
3. Não posso pedir telefone como estudante porque ainda não estou inscrito
4. Não posso inscrever-me porque não tenho seguro de responsabilidade civil nem número de segurança social
Ou seja, não posso fazer NADA!
Nelson 1, Burocracia francesa 3
Na quarta feira consegui fazer a inscrição, o que envolveu mentir ao sistema, outra vez. Parece que para fazer a inscrição no DEA preciso de um código de autorização. Que eu não tinha. Então disseram-me para me inscrever noutra cena qualquer (tipo numa licenciatura em matemática) que não precise de código e eles depois alteram a inscrição. Mas tenho de ir tratar do seguro.
Tratei do seguro (o que só demorou 1 hora na fila, à espera) e da inscrição falsa e voltei à secretaria. Obviamente que então é preciso um rendez-vous que será para ... daqui a 2 semanas! Duh?! Mas será que por estes lados tudo demora pelo menos 1 semana? E a resposta é: SIM! Ou demora 1 semana, ou 2 semanas, ou 3 semanas... Nunca demora 1 dia, 1 hora, 5 minutos. Não, é sempre uma semana ou mais! Lá consegui convencer a mulher a tratar-me disso no próprio dia, porque era estrangeiro, tinha montes de coisas para tratar e não podia fazer nada sem a inscrição. Como disse o Gonçalo Reis, o "olhar de desilusão" funciona e consegui inscrever-me na quarta feira. E com a inscrição pude arranjar o cartão tipo PMB que se usa para pagar os almoços. Não há cartão? Não há comida! Não se pode pagar em dinheiro! só com o raio do cartão!
Ia em quantos? Ah, sim!
Nelson 2, Burocracia francesa 3
A partir daqui tudo funcionou. Tudo? Não! Nem de perto!
Consegui pedir o telefone no próprio dia (ficou logo instalado, não demorou uma semana - Uau!) e pedi a ligação à internet, que iria demorar... exacto, 1 semana!
Vou pedir uma ligação a 15 mbit sem limite de tráefgo, mas para isso preciso do documento da France Telecom a dizer que a linha foi activada em meu nome, e isso demora ... 2 semanas! Ok. Pedi uma ligação a 512 k, com limite de tráfego, para desenrascar e entretanto fui ao site deles pedir uma ligação por modem para ao menos poder ler o mail. "Sim, senhor, vamos enviar um CD por correio. Demora 1 semana". Claro, por esta altura quando me diziam que qq coisa demorava uma semana eu só pensava "só? eh lá, até é rápido! Isto de viver em países desenvolvidos é outra coisa!" Basicamente a ligação à net demorou 3 semanas. Ao fim de uma semana disseram-me que o prazo não era de uma semana, era de 10 dias, porque havia alguns atrasos. Telefonei, fui à loja France Telecom, e diziam-me sempre o mesmo "está em vias de ser activada, deve esperar mais 2 ou 3 dias". Ouvi isto 5 vezes! Sem exagero! E continuo à espera da nova ligação, que deve demorar 1 mês, ou mais! Mas não me chateio. Vou ter 15 Mbit (para quem não sabe se isto é muito, o melhor que existe em portugal é 2 mbit. começam agora a aparecer as ligações a 4 mbit), sem limite de tráfego, com mais de 60 canais de televisão (nenhum dos quais português, claro), telefone gratuito para frança e barato para portugal, e 1Gb de espaço para fazer a minha homepage (mas o que raio pensam eles que eu vou por na minha webpage? Ah, acho que já sei o que vai para lá! ;) )
Nelson 2, Burocracia francesa 4 (3 semanas à espera de uma ligação ADSL? duh!)
O cartão multibanco foi outra aventura. Demorou uma semana (claro!) mas quando lá fui disseram-me que estava lá mas o dossier não estava validado. Faltava o comprovativo de residência. Fui logo a casa buscar o contrato, deixei-o lá para fotocopiarem e fiquei à espera do meu cartão. "Pronto, pode cá passar dentro de ...". Sim, adivinharam. Devia voltar passada 1 semana! E voltei. E disseram-me "ah, o dossier ainda não foi validado, passe dentro de 1 semana". E as semanas vão adicionando. Tive de, mais uma vez, virar o sistema. Liguei para o serviço de apoio ao cliente e lá me disseram que podia ir à agência levantar o cartão. Chego à agência e a mulher (a estúpida da mulher) diz-me que não mo pode entregar, para eu voltar daí a uma semana! "Mas eu acabei de ligar e disseram-me para passar cá!". "Ah, foi?" então lá ligou para a boss e lá obteve a tão preciosa e difícil de conseguir autorização. Consegui um cartão multibanco.
É claro que já estávamos a meio do mês. se estivesse à espera do cartão para comprar o passe tava bem arranjado. Tive de ir à agência dos transportes públicos que tinha filas intermináveis (aqui também aderiram a uma cartão tipo Lisboa Viva e a coisa deu buraco). Basicamente só comprei o passe dia 5 porque até essa altura era preciso esperar qq coisa como 2 horas na fila!
Nelson 2, Burocracia francesa 5
Mas agora tenho multibanco, segurança social, passe de transportes, propina paga, telefone, internet (comecei o blog no dia em que tive internet) e a casa tem tudo o que é necessário (enfim, falta sempre qualquer coisa, mas já está fixe). Demorei 1 mês, mas consegui!
Nelson 3, Burocracia francesa 5
Podemos aqui juntar uns pontinhos: a experiência de vida que ganhei (e os anos de vida que perdi) no primeiro mês dão-me muito mais experiência para enfrentar burocracias! Acho que agora até seria capaz de entregar uma declaração de IRS em papel aí em Lisboa! :)
Por isso, sempre que preciso de qualquer coisa, leio com atenção os papéis e entrego tudo de uma vez. A expressão "dossiers incompletos não serão considerados" já não me assusta! Consigo chegar a uma repartição, deixar os documentos e não ter de lá voltar.
Nelson 4, Burocracia francesa 5
E há ainda outra coisa: o acordo de Schengen apenas permite livre circulação 3 meses por ano. Ou seja, em teoria preciso de uma autorização de residência. Mas a verdade é que não a tenho, não a pedi, e sempre que me falam na maldita "carte de séjour" digo logo "não preciso, sou cidadão da união europeia!".
E o árbitro apita para o final do encontro.
Resultado final: Nelson 5, Burocracia francesa 5.
oooof, mesmo em cima do último minuto consegui empatar!
Por isso, os conselhos que dou a quem quer fazer um doutoramento fora são:
1. vão com antecedência para tratar de tudo rapidamente;
2. preparem-se para que nada funcione à primeira;
3. mintam sempre que necessário. Ou apenas pelo gozo!
4. façam a inscrição na universidade o mais rapidamente possível
5. antes de se aventurarem, perguntem algumas coisas ao orientador, do tipo: "costumam pedir fiador para o contrato de residência?"; "pode ser o meu fiador, caso eu precise de um?"; "posso dar a sua morada ou a morada do seu gabinete para abrir uma conta no banco?"; "não é mesmo possível fazer já a inscrição na universidade?"
E lembrem-se: uma ligação à net é uma coisa indispensável! Permite "falar" com a malta que ficou lá em casa, telefonar mais barato, etc. Ao fim de 2 semanas sem falar com quase ninguém eu tava a dar em doido. E o pior foi mesmo a terceira semana.
Por isso, é importante saber logo quais são as alternativas para fazer uma ligação à net decente e tratar disso o mais rapidamente possível. Assim que a ligação à net funcionar até parece que o resto se suporta melhor. A distância, as saudades, etc.
E podem sempre começar um blog! ;)
1 Comentários:
Adorei este post! :) Aliás, tenho estado a ler os posts todos e só me ocorre dizer: parabéns pelo blog e pelo sentido de humor!
P.
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